Propriedade privada.  E todo o resto deriva disso.

Marina, desastre ocasionado pela incompetência do Estado em fiscalizar.

Mariana (MG), desastre ocasionado pela incompetência do Estado em fiscalizar.

Se fosse possível escolher uma frase que resume toda a teoria libertária, esta seria ela.  É a existência da propriedade privada, e é o respeito à propriedade privada, o que gera todos os outros direitos do ser humano.

A primeira e mais direta consequência de se reconhecer a propriedade privada é que seu corpo se torna a primeira fronteira inviolável.  Sendo o seu corpo a sua propriedade, ninguém pode agredi-lo.  Consequentemente, ninguém pode tirar a sua vida.

A segunda consequência da inviolabilidade do corpo humano é que a única maneira ética e moral de você conseguir bens é por meio de transações voluntárias.  Para que alguém voluntariamente lhe forneça algo, você tem de voluntariamente fornecer outro algo para esse alguém.  Você não pode coagir ninguém e nem ninguém pode lhe coagir.

É assim, por meio dessas transações voluntárias, que surge o mercado.  O mercado nada mais é do que a arena em que ocorrem transações voluntárias.  O mercado é consequência direta da propriedade privada.  Sem propriedade privada não pode haver transações livres e voluntárias.  Consequentemente, sem propriedade privada não pode haver mercado.

A terceira consequência, que advém dessas duas primeiras, é que, tudo o que você adquiriu honestamente, por meio de transações voluntárias e as quais não agrediram terceiros inocentes (seja o seu salário, seja o seu carro, seja a sua casa, seja a sua cerveja, seja o seu cigarro, seja a sua arma), é sua propriedade e — por conseguinte — não pode ser confiscado ou destruído.

Esse, em resumo, é o cerne da teoria libertária.

E daí?

Tendo isto em mente, é fácil imaginar qual deve ser a posição libertária quando uma empresa privada, como uma mineradora, faz uma lambança e, em decorrência disso, pessoas morrem, outras perdem suas casas, e outras ficam até mesmo sem água potável.

Na teoria libertária, se a barragem de rejeitos de uma mineradora se rompe e toda a enxurrada de lama destrói a propriedade alheia — casas, carros, escolas etc.—, então a mineradora não apenas tem de pagar por todos os danos, como ainda tem de ressarcir por todos os transtornos criados.  Mais ainda: deve tentar restaurar (o que nem sempre é possível) a situação para o momento de antes do dano.

Isso se baseia no princípio universal (que não possui tradução em português) do prayer for relief ou demand for relief, e é muito mais antigo que qualquer sistema de justiça positivista. Toda ação (responsibility) ou tomada de risco (liability) que gere um dano acaba por conceder um direito verdadeiro de reparação ao agredido, em uma tentativa de se restabelecer a situação a nível mais próximo possível de como era anteriormente.

Apesar de os manuais de Direito no Brasil doutrinarem que se trata de um instituto de cunho legal e positivista, a ideia de reparação civil está enraizada em todos os sistemas conhecidos que alcançaram o status de civilização. Tanto no Ocidente quanto no Oriente.

Igualmente, se a barragem de rejeitos de uma mineradora se rompe e toda a lama vai para um rio e torna a água deste rio imprópria para ser captada para consumo — deixando seus moradores sem água e os obrigando a pagar por caminhões-pipa —, então tanto os gastos adicionais destes moradores quanto os transtornos gerados pela falta d’água têm de ser integralmente arcados pela mineradora.

(As especificidades técnicas e jurídicas destes procedimentos estão fora do escopo deste artigo, mas podem serencontradas em detalhes aqui).

Por fim, se a lama polui o rio, então a mineradora tem de despoluir (técnicas modernas para isso é o que não faltam; ver aquiaqui e aqui).

Não tem escapatória. Destruiu casas? Tem de ressarcir e, adicionalmente, indenizar todas as outras perdas causadas. Inviabilizou o consumo de água?  Tem de ressarcir e indenizar.  Pessoas morreram?  Homicídio culposo, o qual deve ser punido de acordo.

E quem irá arcar com tudo isso?  Em primeiro lugar, o patrimônio líquido da empresa.

Caso não seja o suficiente, parte-se para os ativos.  Também não sendo suficiente, os proprietários da empresa terão de complementar os cheques.

No extremo, caso os custos com as reparações, indenizações, ressarcimentos e despoluição sejam exorbitantes — de modo que os dois procedimentos acima ainda não se revelem suficientes —, os acionistas ordinários (os proprietários) teriam de leiloar seus bens e propriedades.

Houve uma externalidade que afetou terceiros inocentes, e a implicação disso é que se responsabilize pessoalmente os sócios da sociedade empresária.

Quem destrói propriedade privada deve reparar, ressarcir, indenizar e recuperar, nem que para isso tenham de penhorar todos os ativos de cada acionista da empresa.

Essa é a abordagem libertária.

E quem faria os julgamentos?  Em um cenário libertário completo, seriam tribunais privados (cujo funcionamento foi resumido aqui e explicado de maneira mais completa aqui e aqui).

Já no cenário em que vivemos, tal feito ficaria a cargo do judiciário estatal — o qual não deveria, em hipótese alguma, aplicar multas apenas para direcionar este dinheiro para o estado.  A propriedade da mineradora não deve ser transferida para políticos e burocratas, mas única e exclusivamente para as pessoas cujas propriedades foram afetadas e destruídas pela empresa, e para a recuperação do rio.

A realidade é oposta

Agora, vamos à realidade brasileira:

  1. a) As mineradoras brasileiras representam uma das principais pautas de exportação da economia brasileira. Elas têm um grande peso na balança comercial, com a qual o governo é obcecado (a Samarco é nada menos que a 10ª maior exportadora do Brasil);
  2. b) logo, por serem majoritariamente exportadoras, as mineradoras são o xodó dos governos desenvolvimentistas, como o atual;
  3. c) adicionalmente, há o fato de que mineradoras não apenas geram empregos para muitas pessoas, como ainda garantem fartas receitas tributárias para governos municipais, estaduais e federal. Para se ter uma ideia, os impostos pagos pela Samarco representam 80% da arrecadação de Mariana. Se a Samarco for punida, as receitas da prefeitura da cidade desabarão (não foi à toa que o prefeito da cidade literalmente enfartou);
  4. d) o fato de serem queridas pelo estado, de serem exportadoras, de gerarem empregos, e de garantirem uma fatia robusta das receitas dos três níveis de governo permite que se tenha uma ideia de qual será o tratamento que o governo dispensará às mineradoras: um pito público, algumas exigências reparatórias (as quais serão devidamente reportadas pela imprensa), discursos exaltados de alguns políticos (devidamente registrados pelas câmeras e postado em seu Facebook) e uma multa ambiental (que irá integralmente para o governo).

E ainda que alguma multa de rápida eficácia (aquela que segue os princípios libertários) seja imposta à Samarco, o montante será majoritariamente direcionado para o governo federal sob a justificativa de danos “difusos ou coletivos”, restando pouca, ou nenhuma, esperança para que as verdadeiras vítimas recebam reparações no futuro próximo.

E, sendo o Brasil o Brasil, é até possível que a empresa receba dinheiro público para amenizar os custos e ainda entre no Plano de Proteção ao Emprego do governo federal.

  1. e) Por fim, há também a ironia de que todos os órgãos estatais que detinham o monopólio da fiscalização das barragens da empresa — como o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), vinculado ao Ministério de Minas e Energia, e a Superintendência Regional de Regularização Ambiental — haviam garantido, ainda em julho, que tudo estava “em totais condições de segurança“.  Qual será a punição para esta falha estatal?

Conclusão

“Ah, mas essa ‘punição libertária’ faria com que a empresa falisse e que vários empregos fossem destruídos!”

O libertarianismo, ao contrário do que muitos acreditam, não é uma filosofia pró-empresa.  E nem muito menos pró-empresário.  O libertarianismo é uma filosofia que defende única e exclusivamente a propriedade privada.  Havendo propriedade privada há transações livres e voluntárias.  Havendo transações livres e voluntárias há livre mercado.

A defesa do livre mercado pelos libertários advém diretamente da defesa da propriedade privada, que é o cerne da teoria libertária.

Como consequência, se uma empresa destrói propriedade privada — seja essa propriedade uma casa ou um rio —, então ela tem de ser punida de acordo: ela tem de ressarcir as perdas e compensar todos os custos gerados pelas perdas.

Tudo isso já nos permite concluir que, tanto em termos éticos quanto em termos morais, é “preferível” que um desastre ambiental seja causado por uma empresa privada do que por uma empresa estatal.  Sendo uma empresa privada, os responsáveis por arcar com os custos são única e exclusivamente os proprietários e acionistas da empresa.  Terceiros inocentes são poupados.  Já se a empresa for estatal, todo o fardo recai sobre os pagadores de impostos inocentes, ficando os burocratas do governo totalmente imunes.

E então, quem você prefere que lide com o caso da Samarco: o governo ou libertários?

Fonte: Von Mises.

Nota da Redação:

  1. Um levantamento inédito feito pelo jornal O Globo revela que, nos dez anos da lei, menos de 1% do valor total de multas administrativas aplicadas pelos órgãos ambientais estaduais foi pago. Mesmo quando elas caem na dívida ativa, com cobrança judicial, o percentual se mantém baixo: 12%. No Ibama, a situação é parecida: a União recebeu, desde 1998, apenas 10% das multas emitidas no período. O percentual inclui os R$35 milhões pagos pela Petrobras devido ao vazamento de óleo na Baía de Guanabara em 2000 – a única infração neste valor quitada sem recurso na história do órgão. Sem esse pagamento, a fatia paga cairia para 2,5%.
  2. O IAP – Instituto Ambiental do Paraná está há mais de 20 anos sem contratar técnicos para fazer a fiscalização dos potenciais riscos ambientais. O Ministério Público tem trabalho intensamente para obrigar ações do órgão, mas é incipiente para  todas as atividades. A maioria das licenças dos postos de combustíveis no sudoeste do Paraná, por exemplo, apresenta problemas com a gestão dos passivos, sob suspeita o órgão que deveria fiscalizar. O Vigilantes da Gestão está fazendo levantamento de todos os casos em que o IAP autorizou funcionamento de postos sem observar a LEI e encaminhará ao Ministério Público.

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